domingo, 24 de novembro de 2013

Aos pedaços




"Sofrimento que ninguém descreve,
como um peso na alma [...]
é a dor das águas que o moinho mói, é a
dor que não sabe onde é que dói".
Dante Milano


Vivemos num tempo de fragmentação cultural e subjetiva. Um tempo em que a dor, a morte, o amor, a alegria, o sucesso e o fracasso das pessoas que a mídia escolhe para melhor vender seus produtos são tratados como peças de um game de proporções globais. A mesma pessoa, às vezes voluntariamente exposta, outras vitimada ou incensada por alguma espécie de notoriedade que a torna de interesse público, ganha faces diferentes e até contraditórias, segundo o veículo e o repórter ou comentarista.
Os fatos são avaliados, analisados, discutidos, dissecados, julgados e definidos por diversos critérios, em polêmicas que parecem sérias, mas na verdade perdem qualquer credibilidade quando se observa com isenção tudo que se comenta e sentencia a respeito. Falta lógica, falta objetividade e, como se o mundo se tivesse tornado uma torre de Babel, cada qual fala uma língua, sem entender nem se preocupar com a do outro, e todos são donos da verdade.
A intelligentsia-classe-média, representada pela mídia de mais recursos e poder, toma conta dos assuntos e manipula opiniões, às vezes respeitáveis, para dar ao público uma resposta capaz de aplacar inquietações, dúvidas e escrúpulos. Podemos dormir tranquilos. Afinal, quem somos nós, pobres anônimos, pra pensar diferente? Assim se encerra a polêmica e cada qual veste a opinião alheia a seu jeito, como quem veste uma roupa de segunda mão vendida pelos jornais, revistas, canais de televisão, noticiários radiofônicos.
Armado o jogo, vilões, mocinhos, princesas, bandidos, vítimas e algozes ficam nítidos e fáceis de entender. E o drama, a dor alheia, a notícia pungente da primeira manchete ganham um colorido atraente, confortável, divertido até.
O príncipe pouco romântico casou com a amante feiosa, mas como ousaram quebrar o padrão consagrado dos amores principescos, caíram num irremediável ridículo.
A moça que vegetava (será mesmo que vegetava? Alguém pensou e sentiu com seu cérebro, percorreu as terminações nervosas de seu corpo, experimentou as sinapses que ainda funcionavam nela?), a moça que para todos os efeitos vegetava foi eliminada aos olhos do mundo, sem ao menos gozar da paz e da privacidade que se supõem necessárias a quem vai morrer.
O papa Paulo VI entrou no período final de sua vida e foi filmado, fotografado, visto e revisto enquanto a agonia tomava conta dele em plena janela aberta do Palácio do Vaticano, ao vivo e em cores. E quando já nem esse espetáculo angustioso podiam oferecer, filmaram sua oração calada e humilhada de costas para as câmeras. Qual o sentido dessa notícia, dessas imagens?
Talvez essas figuras, configuradas para o consumo, travestidas de informação, sirvam como um bom suporte para a projeção das dores de cada um, dos conflitos subjetivos, anônimos, que não têm solução ou impõem tanto esforço, tanto desgaste e sofrimento.
Talvez assistindo ao tormento e à agonia alheios, deixando-nos envolver num drama, real ou inventado, que não é nosso, o tempo passe mais depressa e nos poupe de nossa própria dor. Talvez, chorando de pena daquela figura virtual, minha perda fique mais suave, o amor rasgado e o silêncio de uma ausência em minha vida se percam no burburinho que me cerca. Ou o trabalho mal-remunerado, o convívio desgastante, as frustrações, aquilo que grita e pesa dentro de cada um silenciem um pouco.
É tão mais duro e tão mais difícil olhar de frente o que se passa em nós! Temos desejos que nunca se realizam. Sentimos hostilidade por pessoas que não podemos agredir ou afastar; é tanta a ansiedade, angústia que não se sabe de onde vem, tristeza, depressão. Sem que se perceba, a vida individual fica ainda mais vazia diante do grandioso espetáculo das imagens misteriosamente importantes, belas, mágicas, que merecem retratos coloridos e sorriem sempre, inatingíveis. Mas não faz mal que nossos problemas fiquem ainda mais agudos, se temos um anestésico tão poderoso. Sofre-se menos, quando se faz parte da imensa multidão para quem a vida vai passando em branco.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

um beco chamado caminho: Ruídos do Poema Invisível

um beco chamado caminho: Ruídos do Poema Invisível

A gente só ganha lendo você!

Beijo

CAFUZA DE IANSÂ





Eloísa Helena Maranhão



Para Stedile, companheiro de luta. Que sabe o que significa ser filho de Ogum e Iansã.




“A mão que toca um violão, se for preciso faz a guerra,
mata o mundo, fere a terra. A voz que canta uma canção,
se for preciso canta um hino, louva a morte...
O mesmo pé que dança um samba, se preciso vai à luta, capoeira.”
(“Viola Enluarada”; Paulo Sérgio e Marcos Valle)


Ela não passava ainda de um bebê de fraldas, tentando se equilibrar nos pezinhos trôpegos, cabelos começando a crescer, ondulando pelos ombros, muito pretos, pele morena avermelhada, o que lhe rendeu o apelido de Urucum, olhos negros de boi bravo, boi marruá indomável, fugido pros matos quando se tentou domesticá-lo, olhinhos pequenos, sempre ardendo em mil febres diferentes, sempre em busca.
Pois ela não tinha ainda dois anos, e nem mais era amamentada, pois recusava aquele leite e aquele colo que a deixavam inquieta de vontade de andar e correr pelos terreiros – e que depois passaria o resto da vida procurando, não os terreiros, território doméstico, mas leite materno e colo que a fizessem sossegar, procurando e nunca encontrando -, e num desses dias quaisquer entre o primeiro e o segundo aniversário o pai de santo jogou os búzios e declarou, cerimonioso, “é filha de Iansã, essa menina”. A mãe calou-se, desejava uma filha menos guerreira, filha de Oxum, talvez, de Iemanjá, de algum santo mais tranqüilo, mas a escolha não era dela, e a filha era o que deveria ser, Epa Hei Iansã!
Mas o ajuntó da menina era Oxóssi, senhor das florestas virgens, das matas verdes não cultivadas, e quem conhece de santos de cabeça e ajuntós pode imaginar o que será dessa cafuzinha.
Pra quem não conhece, conto eu.
Foi crescendo inquieta, explosiva, indomável, diziam os vizinhos, onde já se viu uma criança tão estourada, e tão briguenta, e tão apimentada, parece um vatapá cheio de dendê, que boca suporta?, salve Exu!, ô meu pai, deixe a menina em paz, já não basta ser filha de Iansã e Oxóssi?
Ainda pequena quantas vezes havia fugido pras matas, depois de ataques de cólera por coisas mínimas, ou aberto os currais, os chiqueiros, os galinheiros, espantando os animais domésticos de volta à selva de onde não deveriam ter sido retirados. Quem quiser comer que cace, respondia em sua lógica irrefutável quando perguntada se deixaria sua aldeia passar fome, e então se podia ouvir a gargalhada de Oxóssi balançando as folhas das árvores, e o pai de santo meneava a cabeça.
Enquanto as outras meninas miravam-se nos espelhos e teciam saias coloridas, Cafuza fabricava arcos e flechas para a caça, e mirava-se nas águas dos rios e lagoas, e era ali que conversava com Oxum e a Iara, e conseguiu o milagre de vê-las juntas, penteando-se os cabelos uma da outra, e ensinaram a menina a tecer tranças e enfeitar-se com búzios e conchas coloridas, e flores e penas, e borboletas vivas e pequenas pererecas, e era o ser mais atraente e mais estranho, aquela mocinha andando na aldeia com brincos de borboletas, colares de besouros e joaninhas, e pulseiras de pererecas ou cobras enroladas nos pulsos e tornozelos.
Quando queria desculpar-se ou agradar alguém ela trazia alguma ave caçada e depositava aos pés da pessoa, e saía feliz por ter dado o melhor de si a quem amava. Nem percebia que seu melhor de si não era compreendido nem acatado, ao menos enquanto era jovem. Depois passou a perceber isso, e ficar mais furiosa ainda quando não a aceitavam como era. Que culpa podia ter de ser o que era, e não o que desejavam de si.
Crescia também cheia de charme a cafuza, sensual, aquele rebolado deixava os homens loucos, os negros, os índios, os cafuzos, até os brancos que por ali passavam para negociar em lombo de burros, primeiro, depois nos trens, enlouqueciam de desejo pela cafuza, imaginavam que domá-la na cama seria o que de melhor podia haver na vida.
Homens. Sem comentários. Todos sabemos como são os homens. Mas ninguém sabe quem são realmente as mulheres.
Principalmente uma mulher cafuza, filha de Iansã e Oxóssi, que não nascera para ser domada, para viver domesticada, para seguir os caminhos dos homens que a queriam para si, sim, quem resistia a tanto furor e tanta vida, mas a queriam submissa, seguindo os caminhos que eles escolhessem.
Cafuza nunca aceitaria isso. Nunca, vírgula, depois que se conheceu, e, já na metade da vida, aprendeu que não valia a pena deixar o próprio caminho para seguir o de outro.
Até chegar nesse ponto ela seguiu, seguiu por amor, seguiu por carência, seguiu por necessidade de colo e leite materno, seguiu por medo de andar no caminho que era dela, seguiu por tantos motivos que quando se encarou de frente, depois de mais um casamento fracassado, dos tantos casos de amor que tivera, quando se encarou ficou estupefata de ter cedido tanto e por tão pouco. Estupefata de ter vivido buscando no sexo o carinho que não lhe tinham, a ternura que desejava, mas espantava com seus acessos de fúria e sua sinceridade atroz. Quando ventava não sobrava pedra sobre pedra, palha que havia sido tão bem colocada nos telhados, paredes de taipa e pau-a-pique, árvores fixadas em suas raízes.
Essa consciência surgiu num de seus acessos de paixão, que a deixaram de quatro, arriada, e quando percebeu, tudo com que aquele novo amor lhe acenava eram os mesmos caminhos alheios – os dele, agora -, alguns carinhos esparsos – quando ele tivesse tempo ou vontade-, companhia quando ela estivesse tranqüila para ser o pouso que ele desejava dela.
Mas ela nunca estava tranqüila. Não servia de pouso, pois era o próprio vento agitado que empurrava e fazia soçobrar as naus, era os furacões, e dentro de si trazia tufões e ventanias carregadas de nuvens escuras, prontas a tragar incautos. Mas não adiantava avisar. Homens são assim, detestam avisos, não prestam atenção ao perigo, para depois se queixarem das injustiças da vida.
Os intrépidos, que tiveram ousadia de se aproximar e conviver com ela, logo se cansavam, exaustos, das iras, das tempestades sem motivos – pelo menos motivos que eles pudessem detectar -, das gargalhadas fora de hora, e dos choros convulsos, muitas vezes depois do sexo, e nunca sabiam o que fazer com uma mulher daquela intensidade, já que não haviam conseguido o intento de domá-la.
Ela também se cansava de ceder, de fingir – mesmo que com a melhor das intenções, e a melhor das motivações era amar tanto e querer estar junto do amado -, cansava de estar sempre tentando ser quem não era, sempre tentando controlar suas paixões e manter-se estável, centrada, quando nunca tivera centro – tão excêntrica -, ou talvez tivesse muitos, vários, constantemente oscilando entre seus múltiplos centros. Dançava rodopiando, não sabia passos de valsa.
O único homem que a compreendera, e compreendera tanto que decidiu dançar sozinho o resto da vida depois de dançar com ela, entendera que ela não havia nascido para seguir ninguém, e que não teria dono, nunca. Se conheceram num forró, um arrasta-pé banhado a Luiz Gonzaga, ele no canto, solitário, encolhido, marcado de bexigas no rosto e no corpo todo, envergonhado, ela espiando, até que o tirou para dançar... Tu que andas pelo mundo, sabiá, tu que tanto já voou, tu que cantas passarinho, alivia a minha dor... tem pena d’eu, diz por favor, tu que choras passarinho, onde anda meu amor...
No rodopio e no hálito da cafuza o moreno embelezou-se, sentiu-se alto, pele limpa, bonito até, feliz naquela noite. Nunca mais quis dançar com mulher nenhuma, e deixou a cafuza para que seguisse o próprio caminho. Ele foi o único que soube amá-la como ela era. Por isso mesmo deixou-a livre, não a obrigou a seguir com ele pelos caminhos que, sabia, não eram os dela.
Ela continuou sua sina.
Conforme o tempo ia passando, Cafuza tornava-se mais mansa, menos estouvada, mas cheia das marcas das danças e das ventanias que provocava. Também nela ficavam marcas, não só nos outros que a acusavam de lanhar seus corpos e almas com sua guerra. Toda guerra fere dos dois lados da batalha, ela foi aprendendo, e ninguém briga sozinho. Muitas vezes o réu era a verdadeira vítima, e agiu como reação ao que sofreu. Outras, não. Nada se pode generalizar.
Era cada vez menos vista na aldeia, e mais nas matas. Continuava caçando solitariamente, principalmente nas noites banhadas de luar, e um branco doutor que a viu caçando voltou para sua Alemanha, depois da expedição, com aquela Diana cafuza nas retinas, abandonou seu cristianismo de fachada e passou a estudar o sincretismo, até entender o que Diana dos Efésios fazia ali nas selvas da América do Sul, travestida de índia e negra. Não sei se entendeu.
De tanto caçar e perambular mata adentro, acabou por encontrar-se com Oçãnhe, que apiedou-se dela, depois de meses de rabos de olhos mútuos um no outro, e oferendas de todo tipo de caça que ela lhe trazia, mas apiedou-se mais quando a viu estendida sobre o húmus, chorando por tudo que fizera intempestivamente na vida, e por todos os caminhos que não deram certo, e por todas as marcas que deixara em todos com quem havia se encontrado, ali abandonada e cheia de culpas. Então ensinou-a a usar ervas e preparar bebidas e cantar cantos que a consolavam e aliviavam sua solidão. Deu-lhe um pequeno atabaque que ela passou a usar amarrado à cintura, e tocar quando já não suportava mais o silêncio a que havia se submetido por opção própria. E por falta de opção, também.
“Quem vem lá?” Aquela voz não lhe era estranha. Já a tinha ouvido nos sonhos, e muitas vezes dentro dos cômodos onde os moribundos jaziam, confortados pela comunidade, até atravessarem o umbral. Era rouca, a voz, magoada, ressentida e envelhecida de milhares de séculos, uma voz que saíra do começo dos tempos. Cafuza tremeu, mas não se entregou. Nunca havia se entregado, não o faria agora.
“Tire essas flechas com pontas de metal”, a velha disse, e Cafuza obedeceu. Compreendeu, também. Aquele pântano onde havia entrado eram as terras de Nanã Buruke, e nem Iansã se atreveria a enfrentá-la. Não agora, quando estava velha demais para lutar. As duas se olharam, avó e neta, avó e avó, e já não sabiam quem era uma e quem era outra. Cafuza, num último ato impulsivo, lançou-se nos braços de Nanã. Afundou na terra fofa enlameada. Havia, enfim, chegado ao porto. Encontrado o repouso.

domingo, 29 de setembro de 2013

Do miniblog




Solidariedade + empatia + calor humano + cumplicidade = amizade – o metal mais raro e mais imitado na história da humanidade.

Eu vi: no meio da cidade violenta, um pombo sozinho atravessando a rua na faixa.

To follow, or not to follow, that's the Twitter.

De Augusto Monterrosso: "Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá." Prêmio de melhor miniconto.

TOC eletrônico é sem remédio. Cada era tem a torre de Babel que merece, né não?

Aranha malhada tem pernas grossas (provérbio tibetano).

Respeito todas as religiões, mas não entendo nem aceito alguns religiosos que não respeitam as convicções alheias.

Autocontrole é saber que espaço cada pessoa pode ocupar em sua vida e que palavras usar para lhe dizer o que pensa sem magoá-la.

Você muitas vezes não vê o que pensa que vê, e esse tem sido o motivo de tantos equívocos e desentendimentos entre os humanos.

Incentivar a leitura é coisa séria, e no Brasil é uma necessidade - a gente cresce pela leitura.

Bom senso informa: nem todo médico faz bem à saúde! Em casos complicados, consulte pelo menos três e adote práticas alternativas.

Político honesto é aquele que só se vende duas vezes se o primeiro comprador morrer antes dele.

Era uma menina de tornozelo irado, corpo malhado e cabeça feita. O que estragou tudo foi o coração mole.

Dentro do Brasil, tantos brasis; nos EUA, tantos euas; na China, tantas chinas. Dentro de cada pessoa, tantas pessoas.

Ser gente da melhor qualidade dispensa qualquer rótulo.

Ingratidão e burrice são amigas inseparáveis. Pode conferir.

Gostar é fácil, mas é preciso mais que isso pra conviver. A rotina carrega uma mochila cheia de camundongos esfomeados. Nada contra a rotina, até gosto dela. Mas que os camundongos são um risco, ninguém pode negar. O nome deles explica: o chefe do bando se chama egoísmo, mas há outros nomes significativos, como grosseria, comodismo, indiferença, interesse e deslealdade.

A internet é uma floresta, mas há clareiras que vale a pena conhecer.

Baby, flanar não tem nada a ver com flanela.

Segredo revelado é uma verdade que usava burca e virou stripper.

Testou o equilíbrio quando a megassena acumulada saiu pra ele sozinho. Passou a ter vertigem de altura.

Solidão é ver tudo nos lugares e ninguém para desarrumar.

Ser simples não é ser primário nem carente nem pobre. Ser simples é um charme que pouca gente conhece. E muitos não conseguem entender. Pena.

Arrogância são duas pernas de pau cheias de cupim.

A vida é um encontro marcado ao qual é melhor não faltar, porque não há outra chance.

Perdeu todas as boas oportunidades por dar importância demais à opinião dos outros. Nesse particular, saber usar a sintonia fina é decisivo.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

CANÇÃO PARA ROY E PRIS



Eloisa Helena Maranhão.



Para os que se recusam a se iludir. Ou, mesmo sem recusa, não conseguem se enganar.





“Desilusão, desilusão, danço eu, dança você,
na dança da solidão.” (Paulinho da Viola)


Eram inconquistáveis. Nem música adiantava. Tinha cantado algumas para eles, puxava da memória as melodias mais macias, as palavras mais sedutoras, e nada. Sentava e cantava, o coração naquela expectativa de resposta.
Se lembra da fogueira
Se lembra do balão
Se lembra dos luares, do sertão...
Não, andróides não devem recordar esse tipo de lembrança, mesmo os de última geração. Procurava outra música.
Images of broken light which dance before me like a million eyes
They call me on and on across the universe
Thoughts meander like a restless wind inside a letter box
Theys tumble blindly as they make their way across the universe
Jai guru deva. Om.
Nothing’s gonna change my world…
Não adiantou. Nem sax tocando Us and Them, nem Vangelis; eram imunes à música, também.
Olhava para eles de soslaio, eles encarando-a muito direta e friamente como “perdeu alguma coisa aqui?”. Desviava o olhar, era insustentável o que via dentro daqueles dois pares de olhos tão claros, tão sombrios. De tanta luz refletida. Só entendia a acusação, a indiferença e um “vocês hão de me pagar”. Não sabia qual era a dívida, mas entendia a cobrança.
E se acenasse, pagasse o mico de acenar, rir para eles, jogar beijo, piscar, implorar amizade, mas assim tão diretamente espantaria os dois, melhor tentar aproximação lateral, continuar na conquista, mesmo que levasse milênios para isso. Tinha tempo de sobra. Tempo era tudo que restava, sempre.
Resolveu contar uma história, voz baixa, mas que desse para ouvir, passou a manhã se preparando, e à tardinha, quando a respiração fica mais lenta e tudo que queremos são histórias, começou.
Conta-se que quando se miraram, a jangadeira e o pirata, jangada e caravela ladeando-se, numa dança sobre as águas, numa sedução que já não se lembravam como fazia, conta-se que o sol cerrou os olhos, deixando espaço para que se mirassem sem se cegar.
A noite desceu ali mesmo, sobre o mar antes avermelhado, e fez-se grande silêncio, carregado de significados. Nos olhos dela ele viu a lua, e ela sonhou estrelas nos cabelos e barba do pirata, e decidiu que singraria os sete mares com ele.
Pois agora, mesmo havendo sol quente, sede nunca saciada, o suor escorrendo salgado na boca seca, a pele ressecando a cada dia, agora havia lua e estrelas. E a noite saberia se fazer para os dois.
Conta-se que ainda hoje, para quem saiba ver, na hora da penumbra, quando o sol desce as cortinas e a noite começa a subir, ainda se vê jangada e caravela ladeando-se no silêncio do Mar Oceano.
Também não se deixavam enredar pelas palavras. As teias que tentava tecer não serviam de laços, nem por momentos.
Pareciam tão seguros, indiferentes a tudo de fora, centrados em si mesmos, só ela era estranha, forasteira, sentia o sol ardendo a chuva gelada, tremia de frio, de calor, de solidão, era só ela?
Sentia uma inveja afiada daquele vínculo entre os dois, aquela lealdade e união que só os condenados e absolutamente desenraizados podem ter, estrangeiros em terra hostil. Um era tudo que restava ao outro. Melhor ficarem juntos.
Começou a inventar brincadeiras, fabricava balõezinhos coloridos, enchia de ar quente de fogueira, e soltava, o céu noturno ficava repleto deles, no lugar das estrelas que já não podiam enxergar, eram balões gritando socorro nas correntes de vento. Girava centenas de piões prateados dourados furta-cor, vai que andróides gostam de cores metálicas, futuristas, punha pra rodar e ficava horas olhando. Tempo era tudo que restava. Pulava corda na frente deles até cair de exaustão. Nem, também.
Um dia resolveu fazer comida para eles. Devia ser doce. E cremoso. Com café e chocolate. Acordou e começou a preparar, mãos pacientes de cozinheira alquimista. Cheiros cores sabores.
Ingredientes:
200 g de biscoitos champagne
3 ovos
250 g de queijo mascarpone
75 g de açúcar
50 g de chocolate amargo em pó
½ xícara (de café) de  rum
3 xícaras (de café) de café

Bater as claras em neve. Juntar o queijo mascarpone, misturando delicadamente. Em seguida, acrescentar as gemas, o rum e o açúcar, obtendo um creme denso e homogêneo.
Fazer o café e deixar esfriar. Banhar os biscoitos nesse café, um por um, e colocar numa forma de cerâmica, feita de argila apanhada de manhã nos rios, úmida e fria, e cozida ao meio dia num forno bem quente.
Quando tiver a primeira camada de biscoitos completa, cobrir com o creme, fazendo camadas de creme e biscoitos. A última camada deve ser de creme. Pulverizar a superfície com o chocolate em pó.
Levar a repousar por duas horas antes de servir.
Bateu chantilly fresco perfumado com vagem de baunilha sem sementes, quando começou a cair a noite e esfriar, para colocar em cima. Duendes costumam vir de noite se alimentar de papa de aveia. Vai que andróides também se atrairiam por aquele doce.
Não vieram. Ela dormiu de tanto cansaço e sonhou.
Estavam em cima de uma montanha tão alta, imensa, com neve no pico, solitários na companhia que faziam um ao outro, olhando o horizonte lá de cima. Ela começou a construir uma escada na encosta da montanha, degrau por degrau, uma torre de babel que a levasse a eles, mas escorregava, respirava com dificuldades conforme subia, o coração disparava, não ia agüentar. Precisava tanto daquele contato, um olhar, uma palavra, um sorriso, não tinha nada, nem a viam ali, eles eram eles e deles. Ela não existia.
Quando acordou, cheia de gemidos enroscados, viu que estavam dormindo, lambuzados do doce que tinham roubado durante o sonho dela.
Resolveu radicalizar. Ficava deitada na linha do trem, de olhos fechados, embaixo do sol. Ou andando por ela, equilibrando nos trilhos. Se o trem viesse eles haveriam de avisá-la, dar um grito, até andróides aprendem a amar a vida. Avisaram nada. O trem também nunca veio.
Uma manhã tudo escureceu. Nuvens cinzas negras, ia cair chuva forte. Construiu uma cabana, deixou espaço para eles, um caramanchão bem seguro, passou o dia erguendo paus, cobrindo telhado, fechando fendas. Entrou lá quando a chuva começou, e eles ao relento. Nem aí. Ensopados, lado a lado, impassíveis, esperando a chuva passar. Gelados.
Amanheceram pingando água da chuva, dependurados de ponta-cabeça numa árvore, como morcegos cegos, braços cruzados, deixando secar. Ela dependurou-se, também. Braços cruzados. Era dia verdinho, recém-nascido da chuva anterior, sol novinho, quase recém-nascido da explosão primordial. Deu uma sensação de que aquele era seu dia, ia enfim conseguir contato.
Ficou ali de ponta-cabeça, cantando mandingas, desejando e esperando.
Foi a primeira vez que ouviu a voz de um deles.
Hora de morrer, Roy declarou em voz alta. Caíram dissolvidos, os dois.
Ela continua dependurada na árvore.